A arte de inventar desculpas deveria ser motivo de orgulho para a espécie humana. Abelhas formam comunidades incrivelmente complexas; golfinhos adormecem metade do cérebro de cada vez; e nós somos capazes de criar desculpas, torcer a realidade ostensivamente, e nem mesmo sentir constrangimento!
Este superpoder abusa do nosso supercérebro e de seus 86 bilhões de neurônios. Depois de séculos de treinamento intensivo, conseguimos convencer os outros – e a nós mesmos – de que não deu tempo de lavar a louça e de que esta barriguinha é apenas culpa da idade, dos corticóides ou do metabolismo lento.
Ao contrário das habilidades de abelhas e golfinhos, nossa capacidade de criar e acreditar em desculpas pode ser perigosa. Alguns acreditam que homossexuais são inferiores, enquanto outros crêem que prisões educam ou que no Brasil não se coloca um paralelepípedo no chão sem o pagamento de propina. Independente do que pensamos, o preconceito, as prisões ou a corrupção não se tornam mais legítimos. No entanto, nossas crenças influenciam nossas ações, e nem sempre essa influência é benéfica.
É fácil ver como isso gera danos pessoais. A depressão, por exemplo, faz as pessoas acreditarem que estão fracas demais para se levantar da cama, trabalhar e encontrar os amigos. Crises de ansiedade causam desespero porque convencem suas vítimas de que estão na iminência de um enfarto e devem evitar ambientes fechados ou com muita gente. Embora o desânimo e a angústia sejam verdadeiros, agarrar-se a eles pode inviabilizar uma vida funcional. Este é o ponto fraco do nosso superpoder: verdades são as desculpas mais perigosas.
Considere o exemplo extremo de um veterano de guerra: matar quem nunca lhe fez mal diretamente, testemunhar a morte dos amigos e arriscar a vida em nome do seu povo. Se estamos em busca de desculpas sinceras, eles têm as melhores. Projetando o impacto disso ao longo dos anos, não é difícil imaginar que essas pessoas vivam uma velhice mais difícil do que em nossos piores pesadelos.
Esse foi o tema de uma pesquisa com veteranos americanos. O estudo, publicado em 2012 na revista Applied Psychology: Health and Well-Being, avaliou 562 ex-combatentes que estiveram na Segunda Guerra Mundial, Guerra da Coréia ou Guerra do Vietnã. Os autores investigaram se esses participantes, que tinham em média 70 anos, sentiam-se satisfeitos com suas vidas. Infelizmente, os resultados confirmaram as suspeitas: suas vidas foram marcadas de forma negativa pela guerra
O que não estava no roteiro de conjecturas, no entanto, é nossa habilidade ímpar de regeneração. Quando os pesquisadores incluíram as experiências positivas nas análises, algo surpreendente aconteceu: as experiências negativas se tornaram insignificantes. As experiências agradáveis (suporte social, sensação de domínio sobre a própria vida e realização conquistada a partir das experiências militares) foram mais determinantes na satisfação com a vida do que as experiências negativas. Os fatores positivos não apenas influenciaram na maior satisfação com a vida como também anularam o impacto de outros fatores negativos.
Eu sofro, tu sofres, todos nós sofremos… Mas, ao contrário do que as minhas tias pensam, não estamos em uma competição de mártires. O que está em jogo são os anos de vida que ainda podem ser vividos de forma positiva ou negativa, independente do passado. Precisamos admitir que poucas pessoas foram expostas a mais atrocidades do que ex-combatentes. Se até eles conseguem amortizar o impacto do sofrimento, ainda temos esperança.
Publicado originalmente no Brasil Post.
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